Aconteceu de verdade?
É bem possível que tenha começado a fazer um filme documentário para entender meu fascínio com o gênero. Ir ao cinema era algo proibido entre os adventistas do sétimo dia, comunidade em que nasci e cresci. A proibição sem justificativa evidentemente só aguçava minha curiosidade em descobrir, afinal, que grande magia aquela sala fechada por cortinas de veludo vermelho era capaz de produzir num filme. A coisa toda é tão doida que vale dizer, filmes em si eu conhecia, em casa nós podíamos assistir.
Estava a ponto de desobedecer para conhecer quando ganhei de presente minha primeira visita à sala de cinema. Minha mãe me levou para assistir Titanic, que no Brasil estreava no mês em que eu completava dez anos de vida. Recebi com alguma estranheza seu aviso de que dentro da sala de cinema fazia frio (como ela poderia saber?).
Minha mãe havia me dito que história de Titanic “acontecera de verdade” e isso serviu de justificava pra ela ir ao cinema; assim como foi justificativa suficiente para a mãe dela dizer que Terra Nostra aconteceu “de verdade” com a família dela, imigrantes italianos no Brasil do começo do século XX, embora assistir novelas também fosse proibido.
Foi já diante da primeira cena que, sussurrando, perguntei à minha mãe: “ué, não era um filme de verdade?” Um filme “de verdade” seria, pra mim, um documentário e por isso não me contentei com a resposta de minha mãe, já imersa no telão, sobre ser sim, um filme de verdade. Talvez foram os atores, delatando a mistura temporal, que me fizeram insistir: “mas eles gravaram isso agora, né?” Embarquei em Titanic envolta nessa confusão, apenas retomada no fim do filme (spoiler alert! ha ha) quando Rose DeWitt Bukater, a “verdadeira” sobrevivente do Titanic aparece. A cena não só sossegou minha inquietude como inaugurou, junto com a novela que minha vó começou a assistir pouco tempo depois, essa ideia de que era possível ficcionar acontecimentos reais pra que as pessoas pudessem senti-lo de verdade. E isso passou a ser pra mim, um filme de verdade.
Fazia muito tempo não pensava nessa história, que submergiu justo agora, quandoquero escrever sobre fazer um filme etnográfico. Talvez seja isso: minhas primeiras experiencias no cinema - como espectadora de filmes e agora alguém que também os faz – navegam um lugar entre verdades inventadas e ficções documentais.
Por dever do ofício de pesquisadora ou por curiosidade com o mundo, tornei-me etnógrafa muito antes de fazer um filme etnográfico. Dá pra dizer que por incompetência até, já que a busca do encontro com a alteridade é o único jeito que eu conheço para perseguir o novelo emaranhado que se segue a uma pergunta formada na cabeça. Ou seja, fiz um filme porque sou etnógrafa e não o contrário. Isso significa que em poucas situações anteriores havia usado de maneira sistemática a imagem do outro como método de pesquisa de questões sociais. Pensar registros visuais de experiencias vividas por mim, por meus interlocutores e por nós, sempre sucedeu a elaboração pela escrita.
A escrita etnográfica participa da criação da pesquisa. Ela é bem mais do que um relatório factual de uma pesquisa, uma representação objetiva da realidade observada de fora. É uma forma de narrativa com o seu próprio estilo, poética, elementos criativos. É possível que quanto mais literários os elementos de um texto etnográfico, mais “de verdade” seja a documentação da experiência humana.
Em trabalhos artísticos anteriores, eu já havia pensado o texto como desenho e imagem, abstraindo todo seu conteúdo, menos esse, que é o fato de que a escrita desenha, mas não havia pensado, veja só, que pra além do conteúdo narrativo presente nas falas, as personagens do meu filme teriam uma imagem. Um erro imenso que poderia ter custado meu filme porque a imagem, até mais do que o texto, tem o superpoder de construir a verdade; ela se impõe e até superpõe ao que é dito.
Enquanto lê um texto, o leitor não viu exatamente o que que viu o etnógrafo, de modo que aquela camiseta com uma marca estampada em tamanho superlativo pode entrar na narrativa quando a descrição encaixar. Evitamos assim que esse aspecto turve, tumultue a compreensão de outros. Separar os ingredientes antes de misturá-los costuma funcionar. É porque a realidade é complexa demais que criamos compartimentalizações como essas para tentar compreende-la.
Quando a câmera está ligada, no entanto, e a documentarista preocupado em captar momentos que construam o carisma da personagem de modo que o público queira acompanhá-la ao longo de sessenta, noventa minutos, não há como fugir da logomarca gigante da Nike e guardar o detalhe para quando couber porque foi só naquele dia que aconteceu da pessoa acariciar um cachorro contemplando o movimento da rua ou morder os lábios repetidamente pelo nervosismo da espera. Em situações como essas, a edição é a juíza final. Em outros momentos da filmagem, contudo, é possível pedir à personagem para trocar de roupa ou falar de novo ou falar de outro jeito e olhar para o outro lado. Mesmo – ou justamente – em um filme etnográfico.
Tenho para mim como problemático nesse tipo de filme, construir cenas e mesmo planos para corroborar uma tese montada a priori, mas um sinal de respeito e cuidado, construir cenas que façam jus a como a personagem gostaria de ser vista. E como nenhuma resposta é simples, vista por quem? Na melhor das hipóteses, a resposta será uma cocriação entre personagem e documentarista. Uma cocriação que implica tradução de mundos de uma pessoa pra outra. Que maior verdade poderia haver em dizer à pessoa que vai ser representada por mim o caminho que estou considerando para o filme, como imagino (ainda que provisoriamente) que a imagem que ora fazemos será editada e ainda, que o público que conheço talvez a interprete assim e assado e perguntar é essa sua preferência? Quem sabe assim, a imagem do outro fique um pouco menos sob a custódia da pessoa que o dirige.
O filme de verdade que quero fazer documenta a construção da verdade que se dá no encontro e propõe a guarda compartilhada das imagens.