Fazer filme, uma equação estranha
Escrever sobre fazer um filme, foi essa a demanda, evidentemente um tanto interna também. Talvez nesse caso não importe o velho paradoxo de que a escrita da vida perturba a experiencia de viver. Porque dirigir um filme não é minha condição ontológica, é função de y e y, uma história desconhecida que quero contar.
Sim, assim mesmo. Conheci meu filme na ilha de edição, ou no seu arquipélago, preferência de batismo pessoal, observando a teia de relações que o filme e sua edição constroem. Conheci fazendo, assim como só se conhece uma pintura e certos tipos de texto ao fabricá-lo.
Mas não é que já existisse um filme pronto a ser descoberto. Não é que eu seja uma escultora retirarando os excessos até desvelar o que sempre esteve lá. No caso de um filme etnográfico como o meu, descobrir sobre o quê é o que se faz requer corpo-a-corpo com a matéria. Eu dou, ela se aproxima e devolve. Eu capto, avanço, ela retrocede, eu recuo também e um espaço se agiganta entre nós. Vou dormir em posição fetal, sonho e volto pro embate: avanço, ela entrega, fico em duvido sobre o que fazer com o que recebo. Arrisco avançando um pra lá, ela dois pra cá e encontramos um ritmo. Até que a correia escapa, os pés se pisam e bem..., da capo.
Metáfora estranha pra dizer que nem tudo que a gente pensa, planeja, acorda entre as partes, enquadra e grava, imprime bem na tela. Não sei qual a explicação pra isso. É assim que é. Simplesmente não imprime. Já tentou fotografar a lua com o celular? (Aprendizado #1) É claro, uma diretora de fotografia saberia, mas eu, diretora-produtora-pesquisadora-assistente-de-câmera-motorista não sabia.
E, como fazer um filme é um empreendimento demorado e custoso até mesmo para filmes de baixo ou baixíssimo ou como vim a saber (Aprendizado #2) – sem orçamento como o meu – pensei assim: já que não imaginei contar essa história por escrito, melhor usar o filme, esse empreendimento demorado e custoso para produzir experiência e não apenas informação. Como trato de um assunto árido da política vale também dizer: melhor seria dirigir um filme de modo a promover uma espécie de imersão não apenas racional naquilo sobre o que se fala (Aprendizado #3). É uma tentativa, sempre é.
Então que: aprendizado #1 + aprendizado #2 + aprendizado #3 = y : uma equação difícil demais se y, o filme a ser construído, não for sobre as agruras de fazer cinema sem dinheiro. E obviamente não era esse o filme que animava minha criação.
A saída que encontrei, para desvendar um tanto de y, foi abrir um pouco um dos componentes dessa equação, encarar o material, me apropriar de decisões passadas para optar pelas futuras.
Aprendizado #2 é tristemente isso mesmo para certos tipos de filme: é o mercado, idiota! (parafraseando o slogan da campanha de Bill Clinton em 1992). Um tanto de coisas o constroem como tal, mas é brincar de Davi contra Golias querer falar disso agora, ainda que isso tenha que ser vocalizado e muito, falar de filmes que propõem outro ritmo e relação com a imagem. E que o outro só é em relação o tal outro do outro.
Já a composição de Aprendizado #1, está mais ao meu alcance nesse texto decifrar: planos escuros capturados porque a cena nunca mais poderia se repetir e ela é central à narrativa (é?), ângulos incômodos para não perder diálogos sinceros, personagens cujo carisma não se percebe imediatamente por que o filme quer um encontro com a vida como ela é e não a jornada de um herói. Mas lembra quando eu falei que nem tudo que a gente pensa, planeja, acorda entre as partes, enquadra e grava imprime bem na tela? Às vezes sem planejar nada conseguimos ótimos planos. Às vezes planejando também. Imprime e muito! Tão bem que destoa do resto. Leva o filme pra outro lugar, mas não o sustenta. Então, por vezes, é preciso dentro de Aprendizado #2, revelar um componente em negativo.
E assim entra o aprendizado #3, por sua vez, formado quase que exclusivamente por perguntas: Para que a experiencia da imagem possa aparecer, esse plano precisa mesmo ser mantido? O que é central à narrativa – essa que reconhece que a forma precisa de conteúdo pra se manifestar? Uma imagem levou a outra e a outra e quando se vê, trechos todos do filme se fizeram. Como isso fica no balanço total de outras partes do filme? Se tirarmos essa história toda, continuamos fazendo jus às personagens? Sacrificar uma parte para que outas vivam.
Dado certo orçamento, construir um filme (y) é, portanto, equacionar as perguntas de Aprendizado #3 com o material colhido em Aprendizado #1.
Dito de outro modo, fazer um filme é sobre elaborar as melhores perguntas que se pode para o material que se tem: uma experiencia do encontro.
Dito de outro modo: fazer um filme não é sobre fazer perguntas desengajadas para um material ainda que de primeiríssima qualidade: uma experiencia imoral.